domingo, 29 de março de 2015

véspera do parto:
perto da canção.
o esboço de um salto
na escuridão
linhas de palavras
fina tessitura
cobra armando  bote
arma e armadura,
livra-me do medo,
manto da palavra
salva-me do espanto
de não dizer nada
sons de claridade
desfiando o breu
no fim, cara-a-cara
a canção e eu

Vivaldo Simão

segunda-feira, 23 de março de 2015

Lili

Lili tinha tranças ligeiras
que adejavam enquanto fugia
de mim após o abraço
que roubou numa armadilha

eu usava roupa nova

com gravata borboleta
e era bobo feito bicho
que caiu em arapuca
um abraço foi tudo que Lili me disse.
levei para além da infância
para entender...
Lili subiu pras estrelas
quatorze dias depois
suas tranças não puderam
conter o corpo pequeno
de menina caindo
do alto de uma mangueira
e partiu na derradeira febre

Vivaldo Simão

Refração

As linhas que eu escrevo vêm de mim,
É de outros, porém, o benefício;
E não sinto fazendo sacrifício
Se um deserto transformo num jardim.

Não é esta a missão para a qual vim?
Meus males não me são um malefício,
Sei: haveria em mim maior bulício
Se eu não fizesse do lobo um mastim.

Também pintei em telas e mais telas
Meu “eu” total com portas e janelas
Abertas para um deserto em miragem,

Mas ao ver todo o trabalho impreciso,
Quebrei tudo e, ao contrário de Narciso,
Odiei também minha própria imagem.

Rogério Freitas

Poema de Fim de Tarde

Nada de música ou pasto,
Nem campina nem floresta;
Tudo no mundo é tão vasto,
Mas a mim tão pouco resta.
Já não canto, já não sou
Poeta de coisas bonitas:
É que asas não alçam voo
Com tantas penas caídas.
Rogério Freitas

Último Encontro


Cobraste, muitas vezes, mais presença,
Mais diálogo, calor e mais afeto
E dizias tu nunca estar completo
O fluxo de minha afeição imensa.
E sempre indiferente, sempre tensa,
Nunca viste, igual à mãe que ama o feto,
Que morava em mim o ardente, o mais discreto
Amor, como em montanha bruma densa.
Porém, se porventura, eu merecesse
As cobranças que sempre me fazias,
Eu, neste último encontro, então devesse
Dizer-te que dormi em noites frias
E que talvez de ti não me escondesse,
Apenas ao teu lado não me vias.

Bandeira branca

foi preciso ser triste
nos primeiros anos
para achar no escuro
a chave da porta
posta sobre os versos
(os primeiros que amei)
depois pulei carnaval
nas entrelinhas dos sonhos
e soprei pra bem longe as cinzas
do último dia
meu coração não precisa mais
de dor e espanto
pra cantar
e eu canto
para encher o espaço
com tudo de mim

Vivaldo Simão

Astrolábio

E mesmo que troquem os astrolábios por satélites
Mesmo que as bússolas se tornem GPS´s
Que o seu astro seja sempre o meu lábio
Decifrando a geografia da sua pele
Como nau que não teme os mistérios do mar
E navega sem medo de naufragar
Apenas enxerga a boa nova de sua terra
Mamilos, umbigo, pernas e céu
Gotas de eternidade em meu paladar
Belezas de sal que desviam o escarcéu de viver
E acordam a precisão de navegar.

Edilberto Vilanova

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Prece pagã 2

Senhor,
 conceda-me a graça de ser tolo e manso
como um bicho que pasta na linha do tiro
ignorante da eminência da morte
dá-me a mudez ou a prisão
de dizer não ao sim e sim ao não
quando meu coração quiser falar
permita que eu seja cego
quando meus olhos indigestos já de tanto horror
provarem novamente esse banquete
de imundície humana cotidiana
que eu seja submisso e burro
como as donzelas dos séculos perdidos
à espera de um amor forjado
pela tradição
só assim serei então
debilmentalmente feliz
e abrirei os dentes
extasiado pelo gozo de ser igual
às  doces crias do meu tempo.

Vivaldo Simão

Sertão de dentro

eu nunca provei primaveras e outonos
nem ruminou minha pele o mar
os meus olhos só sabem das paisagens de pedras e espinhos
de verões perdurando entre efêmeros invernos
sei do som do vento geral sussurrando poeira
sei das palmas calejadas das mãos do meu pai
e se faço versos sobre o mar
é porque tenho sede
e  nada sei do sal

Vivaldo Simão

Entretenimento

entre ter-se no egocentro
traste velho entulhado
em cima de si mesmo,
ensimesmado
e ter tecido o teu riso
nos dentes do outro
e o ID ficando alado
melhor que sejamos nós
num riso compartilhado
Identificados

Vivaldo Simão

Enredo

com a  Kardec
teço almas: a minha e a tua
aí vai ser loucura!
enlinhados, nós em nós
urdidura e trama
até que nem a morte nos separe
pra não ter mais drama

Vivaldo Simão

Com os anos

com os anos
como a rota
rio-oceano
confluíram se as dúvidas
à iminência de um fim

com os anos
fendeu o barro que abrigava tua verve
e a febre dos sexos já não arde

com os anos
sobra 
passado 
quanto menos cabe
o futuro

com os anos
eu quero seguir em frente
com os anos


Vivaldo Simão

Luas

a Ceicinha

às vezes você vem lua nova
e repousa em minhas constelações
vez por outra desponta crescente
repentinamente lua
iluminando ruas
se sua estrela se ofusca
tudo em meu quarto míngua
mas se você paira lua cheia
gravito em seu céu
e visto minha vida de luz

Edilberto Vilanova

Web-haicai

a aracmídia
à espreita me rodeia
caio na teia!

Vivaldo Simão

terça-feira, 4 de junho de 2013

Arpejo

não me acordes com doces acordes
acorde-me para trabalhar,
para suar e me exaurir.
não me faças sonhar acordado
anestesiado sou menos cauteloso
deixa que eu delire apenas nos teus braços
do momento do amor
mas antes quero a realidade
quero estar cansado ao fim do dia
e com dor de cabeça
quero me preocupar e pagar as contas.

só assim nossa casa
poderá ser edificada sobre a rocha.


Rogério Freitas.

Finis hominis



o Co2, o tédio, o cansaço,  o vício
os estragos de um amor mal resolvido
o custo de vida, a baixa renda, o nepotismo vitalício
o freio falho, a lei de Murphy, o transeunte distraído
o emprego maçante, o engarrafamento,
um salto da janela do apartamento
e tantos outros crimes sem perdão
nos apartam da eternidade,
esse nosso anseio esquivo e alado
finis hominis est necessariam malum
está consumado

Vivaldo Simão

Grávido

sai de mim
como fruto
sêmen semente
sol nascente,
que me oriente
meu acidente vital
sal de mim
que me dá sabor
me tempere
paz de intempérie que esvanece
meu pretérito futuro
que o agora tece
pedaço do meu pai
e do filho do meu filho
som que sai de mim,
do meu sangue
meu estribilho
acorde que me adormece
das dores de parto do mundo
cantiga de ninar teu pai.

Vivaldo Simão

Consenso sobre o Sonho

Nunca fora registrado acontecmento parecido. Ouvimos falar de muitas coisas, porém de casos isolados: que uma pessoa durma perturbada e tenha sonhos assustadores, que novidade há nisso?! Mesmo que durma tranquila, ainda assim poderia tê-los. Falo de um caso real e incomum, mesmo se tratando de uma pequena cidade, com pouco mais de 40 mil habitantes. Chuva intensa e noite monótona. Todos se recolheram às suas casas mais cedo, visto que o dia seguinte seria de muito trabalho. Entre relâmpagos e rajadas de vento, corpos se debatiam, se contorciam. Outros se levantavam, buscavam água, mas retornvam para o mesmo tormento, para a mesma fadiga e impaciência entre um delírio e outro. Uma visão pictórica e irreal das coisas se projetava na mente de cada um; Ninguém entendia, mas se tratava da realidade, da realidade que por ora ainda não era o fim.
Na manhã seguinte, todos se mostravam intrigados ao contar o sonho para alguém: Os outros haviam sonhado a mesma coisa, assim, todos concluíram que tinham tido o mesmo sonho ao longo da noite. Não demorou! A rádio fez suas especulações e outros meios de comunicação fora da cidade fizeram as suas; Concluiram em dois dias que o mundo todo tinha tido o mesmo sonho. A mesma coisa! Como isso era possível? Uma paranoia mundia? Ninguém entendia e muita preocupação veio sobre as pessoas. A Ciência não conseguia explicar, ninguém conseguia explicar; Muitos buscaram a morte sem sucesso, muitos buscaram a Deus sem sucesso. O desespero foi total e o medo, assolador; Nações inteiras se levantaram...Até que a trombeta soou, para a alegria de uns e a tristeza de outros.

Rogério Freitas
dê-me o tempo contra as nuvens do destino
pois já não sei se aprendo ou ensino
já não sei se sonho ou desisto
e deviso a vida de imperfeitos pretéritos
o tempo presente é meu indicativo
minha colheira e meu motivo

Edilberto Vilanova

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Rima de areia e mar

a vida tá de onda na minha cabeça
e esse seu sotaque quase cigano
vem surfando em meu ouvido,
vagaroso, feito som de vento,
insinuando uma rima
entre a areia fina
e o mar
!!!
vaga a impelir
e abraçar

Vivaldo Simão

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Agosto


lembro agosto chegando
letal e lento
passando
rio silente
lava quente de vulcão
abrasando a minha casa
minha asa
minha cama
minha sorte
Aí agosto endoideceu meu norte
a primeira morte que provei.

meu passado? estagnado
num BR-o-bró sem fim:
desde que passou agosto
no meu peito fez-se estio
nem vestígio de janeiros
nem flor de mandacaru
no chão rachado do meu rosto
eu hei de vencer agosto
antes de agosto, a mim

Vivaldo Simão

Das coisas que sei do tempo

Um convite pra falar do tempo e eu busco uma fresta, uma réstia de ideia. Vou ao Google: 145.000.000 resultados. Nenhuma resposta. De que tempo estamos falando afinal? De Kairos ou de Chronos? Do tempo da moça do jornal, com nuvens carregadas no fim da tarde, pancadas de chuva no começo da noite? Previsões do tempo são possíveis? Tenho comigo que tempo é o que chamam Deus ou talvez maior que isso. Pensa comigo: Onde vai dar o tempo? De que nascente brota? A gente olha e a resposta é oca. O tempo é imenso e só. Do tamanho de que? De quem? Do tamanho do tempo! Nada é mais que o tempo! Tenho comigo que isso é o que chamam de Deus: o infinito adiante, correndo em frente, deixando pra trás o rastro do infinito. O tempo é como a historinha da cobra que morde o próprio rabo. O coelho de Alice não tinha tempo. “A farta falta de tempo consome o tempo das coisas” mas a falta de tempo ainda é tempo. O tempo que não se tem é tempo. O tempo... paradoxo! Vejamos: ..., não, não. Ainda não entendo! Pergunto um dos maiores homens do seu tempo. Ele responde: “Uma ilusão. A distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma firme e persistente ilusão.” Mas eu sei que isso ainda não é o tempo. As pedras não se iludem porque não percebem. A ilusão só ataca aquilo que pensa e sente. Muito antes da consciência e das sensações havia o tempo. Aliás... Aliás, sempre houve o tempo."Oh Tempo Rei! Ensinai-me, oh Pai! O que eu, ainda não sei." Eu nada sei sobre o tempo.Tanta coisa pra dizer. Nada de concreto. Quer saber?! Já é tarde. Nada mais a dizer. Não há tempo!

Vivaldo Simão

Puberdade

Minha infância sem rios
se fez barquinho de papel
e naufragou
nas águas turvas da cacimba
do interior de minha adolescência

Edilberto Vilanova

Marcas

Uma imagem sinuosa, meio torta
no espelho côncavo das claras águas,
personificação das nossas mágoas
frente a ela, essa alegria não suporta

Em que mundo de luz é que desaguas?
há alguma esperança à tua porta?
São cicatrizes ou rugas? (Que importa?)
- É o movimento sísmico das águas

Não foste criatura de beleza
ainda mais que tu foste abatido
pelo dilúvio austero da aspereza...

E mesmo ante as agruras, comovido,
eu ainda contemplo com surpresa
Meu semblante nas águas refletido.

Rogério Freitas

domingo, 3 de junho de 2012

Dois em um

Maiakovisk já dizia:
 "endoideceu minha anatomia: eu sou todo coração"
 quisera eu que a mim assim se sucedesse,
 que a minha de tal modo enlouquecesse
 antes isso a essa tão inconciliável dicotomia
 porque digo: na minha anatomia,
 toda ela é tão somente
" célula do caos em combustão"
é peito bradando guerra
 onde o resto anseia trégua
 é briga de água e brasa
 dança de brisa com furacão

Vivaldo Simão

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Música Mista

Ainda bem que ela volta
Com seus sortilégios
Com sua astúcia

Brinca em meu peito
Devolve meu riso
E minha angústia

Traçar cada linha
É o nosso objetivo
E como recompensa
Ganhamos apenas satisfação

Os contratempos vêm
As dificuldades vêm
Mas tudo isso
Encaramos juntos
Cada um cúmplice do outro

Quando ela vai
Não sei se demora a voltar
Só tenho certeza
De que voltará
Porque o que fazemos
É também vida
E a vida um poema sem fim


Rogério Freitas

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Retrato de um poeta bissexto

traço minha rota torta
feito a linha que comporta
a letra de um deus
bisexto de verso e aniversário
prematuro, libertário
poeta e ateu
ora bato a asa
ora bato à porta
minha carne mal suporta
esse anseio meu
nessa ânsia que me cabe
de abarcar o mundo
antes que mundo me abarque
e se acabe
antes que mundo me abarque
e acabe
embalando-me em meu próprio berço
embolando-me em meu próprio passo
recolhendo-me no vasto universo meu

Vivaldo Simão

Maravilha de sal

o mar é maravilha
maré cheia de acalanto
é água benta de quebrar quebranto
canto bom que entoa a voz do vento
quando transborda e nos encharca
de brisa e maresia
e outras alegrias
carentes do cais
que lhes somos nós
o mar é esconderijo turvo
de benções e perigos
pois ai de nós
se o mar nos traga,
mas se o mar nos trás
ruminadas coisas de sal
que sejam o nosso sustento
ou alguma brisa que nos beije
que nos seja alento
num ocaso qualquer
o mar será maravilha
maré cheia de tudo que brilha
longe dos olhos de quem vive
aquém da barra da saia do mar


Vivaldo Simão

Estatística

todos fazem parte dela
o gari, o pedreiro, o carpinteiro
o vigia...
menos seu Zé
homem do sertão, solitário,
que mora em uma choupana
desconhecida pelo IBGE

ele labuta arduamente
pra comer, pra beber, pra se vestir
e tudo com honestidade
é uma pepita de ouro
em meio a um deserto

ele canta
entoa suas canções alta noite
conte (olha) estrelas e sonha
cada um aprende a ser feliz
lá à sua maneira
como também aprende a não culpar
os outros pelas suas tristezas

e seu Zé é assim
contente com seu destino
não sabe ao menos
quem é o presidente
e não faz mal
o presidente também
não sabe quem é ele

Rogério Freitas

Namoro de astros

A gravidade do amor
paira sob o lençol celestial
duas luminárias seculares
velam as noites
Um cavaleiro cavalga na pele crua da lua
no seu cavalo branco
de espada em punho
São Jorge, devorador de dragões
Vestido de luz
nosso romance flutua:
você Vênus
baila entre as galáxias, nua
Iluminados pelo sol
seguimos lado a lado
passeando pelas eras
você Dalva, eu lua

Edilberto Vilanova

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Reza velha

Nosso amor
desprotegido pelos santos
sem colar benzido no pescoço
quebrou o encanto
e não tem reza
que cure esse quebranto

Edilberto Vilanova

Lívre arbítrio

misterioso é o ser e não transmuta
sempre irial ou sempre iracundo
carrega dentro de si, no "eu" profundo
essa carga imutável e absoluta

e sua vontade é dissoluta!
mas as escolhas perante este mundo
sequer o distanciam um segundo
da inexorável e real conduta

sempre aprisionado a seus anseios
o homem, não importa quais os meios
busca seus sonhos como em labirinto

e o ser, que se acredita ter mudado
apenas teve seu sonho saciado
ou conteve à força seu instinto

Rogério Freitas

A sua presença moça

a sua presença moça
interna em mim
é coisa que não se cansa
não cessa
feito a volta das horas em torno dos dias
e como o mar a ruminar o sal
e o céu aos sóis e luas
assim sucede essa presença sua
que tanto translada quanto rota
em volta do amor que mora
em mim

e ainda que longe você mesma
esteja
da moça que vejo
quando olho a criatura
inquilina do meu desejo
que uma vez tendo em mim
abrigo interno
nunca dei despejo
vejo moça ainda
e quanto mais ausente, moça
mais sua presença
nunca finda


Vivaldo Simão

terça-feira, 12 de abril de 2011

Solitude II

No pequeno porto
A barca só
Na pequena aldeia
Abarca só
Seus sonhos o pescador

Rogério Freitas

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Despertador

Ao despertar da dor
a exatidão do tempo rompe em silêncio
em rascunhos e fagulhas
De novo o alvorecer do sonho retirante
a abrir feridas
o corpo se desfibra e arde novamente
o sol recorta as víceras
e espelha pelos escombros de qualquer mercado
flores e lástimas cobertas de vítimas
Não mais vozes do silêncio
agora mapas do acaso
não mais amores vãos
agora resquícios de orgasmos
nada mais de escuro
Agora louvores
Cores e atores
Abram as cortinas para o teatro corrosivo do dia
repleto de dramas
recomeça mais um grande ato
amargo e mágico de viveres.

Edilberto Vilanova

segunda-feira, 28 de março de 2011

Matéria bruta

Dava pra fazer um monumento de mármore à paz, em Lower Manhattan
Com a frieza branca que transborda do peito desses homens
Dava pra reerguer Hiroximas e Nagazakis
Com a força bruta que brota dos braços desses homens
Quando agridem e ferem,
Nas ruas, nos bares, nas lutas, nos lares
Com o fogo que arde nesses homens, derreter-se-iam grilhões e grades
E todo o gelo dessa era glacial dentro de nós
Dava pra construir centenas de milhares de cidades
Nos quilômetros baldios dentro desses homens
Neles abrigar-se-iam meninas chinesas largadas nas ruas
Legadas à morte por inanição
Caberiam os gêmeos, os fisicamente imperfeito, os débeis mentais,
Culturalmente enterrados vivos nas tribos indígenas da América
Caberiam os mendigos e os meninos senis esquecidos
Pela maquinaria construtora da ordem e progresso mundial
Caberiam serenos asilos, com jogos nas calçadas, café com prosa e sorrisos
Caberiam escolas e escolhas que aqui fora já não cabem
Quantas flores e frutos teriam comportado
O espaço improfícuo dos Campos de Auschwitz?
Quanto sangue derramado nos campos de batalha, nas chacinas diárias
Enquanto filas infinitas estendem-se nos bancos de sangue.
Com as mãos que atiram pedras sobre o véu que cobre o corpo
Das mulheres do oriente
Cavar-se-ia a terra, arrancar-se-ia novas fontes
Em cujas águas matariam a sede os sertões
E converter-se-iam Saaras em searas

Vivaldo Simão

Os olhos do tempo

Tudo se dissolve nos olhos do tempo
Os feixes de palavras
As tranças das sandálias
As catástrofes diárias

Tudo se dissolve nos olhos do tempo
Os instantes de cansaço
Os corpos decepados
Os crimes indecifrados

Os acontecimentos, as rosas abortadas
Os edifícios, os rumos das estradas
Os jornais, as revelações
Tua glória e teu declínio
Teu riso e tua lágrima
O que foi profetizado
O que foi ofertado
O que virou vapor e o que se solidificou
Os amores presentes e passados
O que ganhou forma e o que ficou abstrato
Teu perdão e tua mágoa.
Tudo se esmaga nos olhos do tempo.


Edilberto Vilanova

Por seus olhos

Apenas vi um olhar reluzente
A iluminar meu coração impuro
E, nessa hora, a esperança de um futuro
Vigorou no meu peito novamente.

Apenas vi um olhar reluzente
Que me falando co ardor de amor puro
Resgatou coa bondade do escuro
A triste alma deum corpo decadente.

Apenas vi um olhar reluzente
Cujo brilho singelo, em minha mão,
Deixou a cura para um ser doente.

E depois desse bom primeiro passo,
Eu finalmente corri para o abraço
Da vida, da paz, da libertação.


Rogério Freitas

A Besta pop

Do além-mar da midiocracia
Emerge a grande besta pop e se anuncia,
Mistificada, à multidão
Histericamente mesmerizada
Historicamente mesmificada
E beija-se, e curva-se, e baba-se os pés
Da grande besta pop
Mãe amada
Dos esboços de astros
Dos projetos de deuses com fomes de flashes
Vampiros sedentos
Retratos de tempos de porca miséria emocional
Mas outros astros, tão mais nobres
E muito mais loucos
Pairam muito além desse mar
E aprendem a beijar a pele do céu


Vivaldo Simão

Poema de reconciliação (aos meus pais)

O beijo se refez.
As bocas fechadas e mudas
Entreabriram-se de súbito

No fim do estio
Um relâmpago
Cortou o silêncio das nuvens
E das veias de chuvas
Esvaiu-se a sangria dos açudes
Encorpados
Os lábios de nuvens se tocaram
Fizeram trovoadas
Abrindo um tempo de fartura

A transubstanciação da vida
Recompôs-se na rota das abelhas
No aguaceiro dos riachos
Na pele mordida das mangas
Na sabor rosamarelo das goiabas
No ciclo do beija-flor
No mormaço da tarde

“Quebrado o gelo do riso”
O silêncio quebrado
Quebrado o tempo mal vivido
A agulha pontua novamente
O alinhamento das costuras
E tece agasalhos para o inverno
A coruja agourenta
Que cantava: nunca mais nunca mais
Na árvore do terreiro
Voo pras lonjuras
Onde pousou a zabelê
Cantando as chamas de novas manhãs.

Edilberto Vilanova

Quando Ela Passa

Quando ela passa,
Com seus passinhos sutis,
A rua se enche de graça,
Trabalha o povo feliz.

Quando ela passa,
Toda a nossa rua sonha,
E o homem casado disfarça
Que já perdeu a vergonha.

Quando ela passa,
O adolescente matreiro
Olha seu corpo de raça,
Vai se trancar no banheiro.

Quando ela passa
Em frente do bar da esquina,
Seu Zé dá pinga de graça,
Só por causa da menina.

Quando ela passa
No açougue do seu Lisboa,
Grita ele com muita raça:
- Já chegou a carne boa!

Quando ela passa
No mercado do Clemente,
A freguesia escassa
Se transforma em muita gente.

Quando ela passa
No lanche do seu Joel,
Ele descuida da massa,
Mas sai bem feito o pastel.

Mas quando ela não passa
- Que tristeza nos rodeia!-
Tudo na rua se embaça,
Toda a gente fica feia!

Rogério Freitas

terça-feira, 15 de março de 2011

CINEMA MUDO

Nas horas habitadas por nós
só o silêncio nos povoa
tudo em nós perde a voz
nossos gestos mudos
nossas palavras surdas
nossas vidas caladas
caladas nossas vontades
nossas formas incompletas
partindo em retirada
no espaço ermo do nosso mundo, desmoronado
nossos corpos desabitados
nossos instantes de consumo
consumindo-nos
no calor das horas habitadas por nós

E no filme que nos revela
imagens fragmentadas
do amor que ainda fingimos fazer morada
em nossas ruínas.

Edilberto Vilanova

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Poema da amiga ausente

A imagem da imensa ausência tua
Me acompanha na viagem
Levo de volta, na bagagem, sólida saudade
Solidão que eu quis minguar
com teu abraço
Eu era a visita esperada
e esperei você
Como quem, insone, espera o dia
E minguei
Ali silente, em agonia
Doente pela ausência do signo de luz
Ao qual me conduz o teu nome.

Vivaldo Simão

sábado, 9 de outubro de 2010

A louca

Não trazia nada nas mãos escalavradas
A não ser gestos inconfidentes
A não ser a calidez das estradas

Trazia grudado ao sapato:
sóis e sangue,
mangues, mares e sertões

trazia no corpo maculado
Vestido em farrapos
a escassez de gente

e sobre os ombros cansados
um alforje de bugigangas
sem serventia

Trazia grudados ao peito:
Medo e segredo
Dores, canseiras e solidões

Desconhecida de si
Achara-se nos caminhos da loucura
perdera o juízo
E nunca mais se julgara.

Edilberto Vilanova

quinta-feira, 29 de julho de 2010

As pedras do novo tempo (Versos para um tempo de meninos fendidos)

A Drummond

Caro Carlos
No espaço secular que nos separa
Deu-se a antimágica,
Apoética semântica,
E deslapidaram-se as pedras do meu tempo
Tempo de palpáveis pedras despidas de abstração
Endurecidas pela feiura de um púbere século
De meninos emuralhados
Alimentando internos cães famintos
De dez em dez minutos
Que erigem, no espaço outrora peito, novas Hiroximas
Irradiando a cancerígena escassez de espírito
A rosa do meu povo fenece.
E a aridez de uma nova raça promove o auto-holocausto
Um estado novo de meninos encanecidos.
Ensandecidos.
Incandescidos.

Tempo gauche
Em que os homens entortam anjos

Vivaldo Simão

sábado, 5 de junho de 2010

Soneto de Fundo de Quintal

Namorar as paisagens mais que belas,
Ouvir da natureza seu gemido;
O lavrador suado, em alarido,
Arriscando as toadas mais singelas.

Absorver todo o eflúvio das estrelas
Sobre as rosas ou no ar amanhecido,
Admirar mesmo o vento desabrido
A bater incessante nas janelas.

Abraçar os alísios à tardinha,
Quando o sol se debruça e dá à vinha
E ao horizonte calmo a cor mel,

Depois no ateliê em alto adro
Misturar tudo, sorrir; eis o quadro
Pintado com palavras no papel.


Rogério Freitas

Inocência

Lá estão eles, ambos garotinhos,
Ele segura a bola, ela a boneca
Sorridente o garoto e mais sapeca
Chega-se a ela, confessa segredinhos.

Ela sorri, mostrando seus dentinhos,
De lado deixa um pouco a tal boneca,
Lhe faz um gesto. Ele ri, não se peca
Quando a intenção é receber carinhos.

Se lá chega outro ou outra com carência
De lhes falar; não, não se vê furor,
Nas faces só a mesma complacência.

A sós de novo, volta o mesmo alvor,
Aquela doce ingênua confidência...
Só mesmo na inocência existe amor.

Rogério Freitas

Inscrição na pedra bruta

A chuva se armou
com trincheiras, foices e machados:
a todo vapor reuniu
um batalhão de soldados nas nuvens
que desceram pingo a pingo
alastraram-se em correnteza terra adentro
arrastaram casas e faces.
e depois de um árduo trabalho
escreveram na pedra bruta do morro velho:
erosão.

Edilberto Vilanova

Prosa moderna

O sexo ativou os satélites do ID e não houve EGO nem SUPEREGO que invadisse seu sinal: ele pintou e bordou. Rompeu os bits da internet. Provocou orgasmos múltiplos na tela cibernética. E enquanto o amor amofinava-se nas bibliotecas, ele botou o bloco na rua, subiu no trio elétrico e fez a festa. Desesperado, o amor saltou dos livros e gritou:
_Eu também quero entrar na dança.
Eis que o sexo reparou sua armadura com um olhar iâmbico e berrou:
_Aqui só dança quem tira a roupa.
Então o amor fitou seu próprio corpo, olhou com sinceridade para suas rugas, notou que já estava anacrônico, enfim percebeu que nesse mundo não há mais lugar para quem usa roupas. Tocado pela tristeza dos dias brancos, o amor entrou em uma depressão profunda. Foi ficando cada vez mais moribundo, até que se desamorizou e saiu de cena.
Hoje o amor é coisa encantada, causo que de tanto ser contado virou lenda, história antiga escrita à dura pena.


Edilberto Vilanova
.

Domingo

Passadas as feiras
Feitas as compras
Aumentadas as contas
Mingo do domingo
As chagas maculadas pelo sábado
Concebido pelo pecado
Adormecido
Consumo goles de ociosidade
Concedidos em face
De vontades minguadas.

Edilberto Vilanova

De calças curtas

Um sujeito de calças curtas
é o menor dos humanos
como quem anda descalçado
na terra dos homens de sapato

Tem um q de imoral na pele da perna
nos pelos, na derme
o cerne da questão
é que "a questão é de ordem"

Tem um "q" de caos e crime
em não ter o pano
sobre a pele da perna
como a cara das mulheres árabes
como os ombros das indianas
suspeito que minha pele esquálida
transpire algo de sexo joelho abaixo
é o que me parece aos olhos dos senhores
todos cheios de calças e poses
nesta instituições
chamadas de respeitosas.

Vivaldo Simão

quinta-feira, 25 de março de 2010

Sede

Ainda deságuo quando você demora
a descansar seu coração selvagem
Em meu peito
Pois sei que teu cais
É qualquer porto
Qualquer poço
mas você sempre volta
e não tem jeito mesmo
minha sede cede a qualquer encanto teu
tenho a sede dos oceanos
você é minha sede
sede minha represa
sou mulher oceano
e nem a tempestade sacia minha sede
pois quem chove sou eu
a tempestade sou eu
vem cedo navegar em meu pano
deixa teu navio-coração
descansar no peito meu.

Edilberto Vilanova

Solitude

Eis o que tenho feito:
Renunciei,
E alguém mais forte do que eu
Ocupou o meu lugar;

Eis o que tenho feito:
Hesitei,
E alguém com mais atitude
Chegou em minha frente;

Eis o que tenho feito:
Amei,
Mas na dúvida me calei
E acabei por ficar sozinho;

Eis o que tenho feito:
Desregrei-me,
E nesse isolamento frívolo
Perdi oportunidades;

Eis tudo o que tenho sido:
Renúncias, hesitações, dúvidas,
Desregramento.
Toda uma vida resumida
A uma mísera existência.

Rogério Freitas

segunda-feira, 22 de março de 2010

Transubstanciação

dedicado a Rejane Meyson, pela inspiração

Tomai a vida que codifico
Nas entrelinhas dos meus versos
Eis o meu corpo e o meu sangue

Vivaldo Simão

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Premonição

Te seguirei ciente e peregrino,
Eu bem sei: todo o esforço não é em vão;
Nos unirá corpo a corpo o destino,
Ou nos porá na mesma solidão

Rogério Freitas

sábado, 2 de janeiro de 2010

JANELA 19

Partida. Eu encaro o quadro vivo. Que paisagens me esperam? Sou como o cão entretido a ver o giro do frango no forno do mercado: sabe lá porque, essa vida corrente ao revés fez babar e "abanar o rabo", salivante ante o objeto do desejo platônico, o elemento vida. Vontade de me apossar de tanta cor, tanta vivacidade, eu que no correr dos anos ando desbotando. A fome no meu peito não tem medida. É como fosse uma forma de amor.
Às vezes a vida corre menos ligeira: pontos de parada. Do lado de dentro eu olho o quadro e ela, senhorita vida, retribui o olhar, mas me olha com olhos de cega ( como quando alguém encara um ponto além de suas costas)... cega, e ainda muda, uma mudez chapliniana que me diz tanta dor e tanto riso.
Eu, do meu canto, me encanto: Como cabe a vida em tão poucos centímetros quadrados?
Olho a louca da rodoviária que vai e vem dizendo coisas que não sei ouvir além desse vidro. Talvez nem ela saiba ouvir também de lá, ao lado da própria voz. O mundo mesmo, às vezes, é cego e surdo aos loucos por puro fingimento ou covardia, quiçá medo da cota de loucura que nos cabe. Certo dia, um sujeito qualquer, objeto abjeto de si mesmo, inventou o conceito de normalidade pra fingir que gente é tudo igual. Bela verdade postiça pra quem goza a fantasia de segurança.
Um homem sentado lendo um jornal num tempo em que olhar o mundo impresso é pura perda de tempo mostra que mesmo esquálido, o passado passeia no presente, resiste, renitente.
Aromas de doce e delícias de sais saltam sobre a alguma janela entreaberta ao bel-prazer do meu olfato. Prazeres não duram, são passageiros como eu.
O som do motor.
E da janela a vida volta a correr ao revés: Re-partida.

Vivaldo Simão

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Continente

E agora, que será do mar
Se todas as “Américas” jazem descobertas?
E eu, tendo sorvido o sumo dessa história minha e tua
Anoiteço descrente de encontrar
Novíssimos continentes
E reinvento teus países tropicais
Nos quais repousam meus marujos
Com olhos fartos de mar
E lábios e dentes e músculos e sexos
Cheios de sedes e fomes
De amar

Vivaldo Simão

Anúncios modernos

Procura-se
Pedaço de libido
Perdido na hora do rush

Vivaldo Simão

Gira mundo

O dia vem vindo – contemplo daqui
O sol que dos montes me surge luzente
Mal surge tão rubro transforma o espaço
Um pássaro ao longe me canta dolente

O dia vem vindo da minha janela
E eu vejo o começo da vida agitada
Os homens dominam, os carros dominam
O meio da rua, também a calçada

A aragem amena se extingue com o sol
É grande o bulício; Já não mais contemplo
Os homens não lutam aqui pela vida
Somente desejam erguer o seu tempo

Esquecem com a pressa seus próprios irmãos
Nas mãos a ganância, só raiva e rancor
Com o mundo girando na busca incessante
Quem pode ao menos falar de amor?

Meu peito, que sofre dos males da vida
Espaço não acha no mundo egoísta
Valores que tenho me foram negados
Apenas os tenho pagando analista

Rogério Freitas

Jeremias e Dália

* A um casal oeirense

Jeremias, o grande itinerante,
Pôs o seu caminhão na escura estrada;
E após beijar Dália, sua amada,
Em lágrimas partiu no seu possante.

Dália, bela mulher dissimulada,
Fez prece, mas sozinha riu no instante
Em que Jeremias, seu viajante
Sumiu na escuridão da madrugada.

Jeremias – pobre homem enganado!
Tendo a certeza de ser muito amado,
Seguia felicíssimo ao volante.

Dália, naquele instante de sarcasmo,
Previa já o mais gostoso orgasmo
No corpo varonil do seu amante.

Rogério Freitas

Natal branco

As crianças espreitaram a fúria do mundo
E mudas caíram no viaduto
Vingou o fruto pedregulho da sina,
A assassina de luas minguantes,
A nudez da voz, estampidos dentro da noite,
Malabarismo no farol, o olho torpe do consumismo,
O riso ensanguentado e o escárnio.
O segrêdo dos lábios, o beijo branco
No confronto de cores
De um dia pálido
E entrecortadas, palavras ávidas.
A desesperada réstia de esperança
E apenas um embrulho
Para celebrar a magnitude da vida.

Edilberto Vilanova

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Três palavras

Três palavras
Para lavar
O ego

Três palavras
Para lavrar o céu
(da boca)

Três palavras
Para levar a vida
(às cegas)

Três palavras
Para livrar d mal
Da dúvida

Três palavras
Para louvar
A lânguida certeza
Que cabe como luva
Ao teatro dos amantes

Vivaldo Simão

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Maria

à minha avó
Maria Ferreira
Estrada de ferro trilhada pelo pão de cada dia
Mirá-la-ía no fitar do meu riso
E a sentinela inquilina de minha horas
Ganharia asas de aves-marias
Abrandar-me-ia com a cantilena de tuas ladainhas
Rogaria romarias, ó Maria
Tende piedade de mim
Rogai por mim, nossa senhora da bondade
A boa idade dança na folha da Malva-do-reino
Dai-me um chá de capim santo
Me ensine a caminhar no teu rosário
A tecer teu terço, santa lenda
Carmelita, lajedo sem fenda
Não vigiou teu penar
Nem choveu com teu hino(voar)
Mas tua adoção germinou Marcos e Helena
E um orfanato de rebentos embalados pela mesma mão
Aquecidos pelo mesmo algodão
Agora homens que perdem noites
Tragando tuas palavras de renda
A tecer a manhã de birros
Em tua almofada de alfazema
Olê, mulher rendeira
Que me ensinou a andar
Me ensina a fazer renda
Que aprendo a navegar.

Edilberto Vilanova

Solar das doze janelas

Entre a aurora e o crepúsculo
A catedral e a capela:
Um solar
Doze janelas
Doze símbolos de castidade
Doze donzelas
A luz que se escurece
Entre as pernas
Se derrama pelos telhados barrocos
Herdados de Portugal
Ao ranger das portas
Os lençóis guardam o segredo mais roto
As camisolas bailam nas alcôvas
E guardam o negrume de doze sexos
A casca casta do amor
Intacto, impenetrável, inviolável.
Assim se faz a lenda
Onde a pedra da memória se abre em fenda
Em carne viva história:
Doze janelas, doze símbolos do tempo
Os fantasmas passeiam pela praça da vitória
Os cães velam o sono dos homens
O vento acoita as árvores
E lá na casa esperança
Os lobos espreitam pelas frestas
O repouso das doze virgens
Doze cinderelas

Edilberto Vilanova

domingo, 23 de agosto de 2009

Rosa dos ventos

Da noite o imenso véu cobriu o mundo
Findou-se o dia; Para uns temerário
Para outros da agonia o sudário
E tanto caos de amores oriundo

Hoje assim tão raso, ontem tão profundo
Risos alegres, dores do calvario
Caminho bom, péssimo intinerário
Do sagrado ao profano num segundo

A noite pouco a pouco se acentua...
Cobrindo o campo a palidez da lua
Nas ramagens um fremito, um açoite

E a humanidade toda amanhã
Seguirá de novo a rotina vã
Cobriu o mundo o imenso véu da noite.

Rogério Freitas

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Cantiga da menina sem endereço

Quem pintou o amor dessa menina
Com a cor da água?
Quem moldou com o barro da loucura
Sua forma?
Que lhe viu chorar borrando a maquiagem
No espelho?
Quem ouviu quedar a voz
Do seu segredo?

Seu destino, seu degredo
É migrar sem bando
Passarinho extraviado
Preso para sempre ao duro fado
De ser livre

Quem tocou à dança da serpente
No seu ventre?
E quem guardou sob os seus pelos
Seu desejo?
Quem subverteu seus fusos e apetites?
E escoltou sua rota
Na fuga de casa?

E quem traçou em branco
O seu sobrenome?

Vivaldo Simão

Haicai aos teus olhos

Teu olhar retrata
A água, o crepúsculo, a ave.
O verde da mata

Rogério Freitas

A canção do espírito

A canção do espírito
Adormece o corpo como febre
Faz valsa o batimento cardíacos
Entorpece a vida
E derrama gotas de delírio pela terra

Ah!Como soam bem esses novos acordes
Acorde!
Repare nas cores transversais que desabam do céu
E se envenene com mel
Porque ainda há abelhas fecundando flores
E a pedra sempre pó
Traz de pouco a pouco a flor do sono
A eternidade é deserta e o corpo desbota

E como cai bem no desalinhar do corpo
Essas novas roupas
Ah!Como são sinceros nossos garotos
Como são modernas nossas moças
Amanhã ou depois virão outros
E tudo será memória
Em outros corpos os mesmo fantasmas
E a canção do espírito tocará
E vai haver dor e lágrima, mas
No fim, em casas subterrâneas
Ficaram tons neutros e resíduos de vozes
E será só canção para todas as almas atrozes

Edilberto Vilanova

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Ultimas palavras

Sobre o tumulo do velho saxofonista

Um epitáfio:
Aqui Jazz!



Vivaldo Simão

Metafísica

Quando os sapos se encolhem
Os homens coaxam
Montam em seus cavalos metálicos
Remontam suas máquinas
Despertam cheos de fomes, de sedes, vontades
Cavalgam pelo campo, pela cidade
Se embaraçam
Se atropelam
Se despedaçam
Se apaixonam
E se embriagam
Comem, se fartam de cansaço
Rezam, dormem, sonham
Mas os sonhos moram em casas encantadas
Trancadas a sete chaves

É preciso quebrar as portas dos sonhos

Os homens escrevem palavras na água
E na água só sabem ler os peixes, os sapos

Quando os homens se encolhem
Os sapos coaxam

Edilberto Vilanova

O avesso do livro

O avesso do verso
É o tiro
No avesso do livro
O homem consumido
Consumindo o homem
Pelo sangue, pela noite, pela fome
E a mão calejada
E a boca calada
De quem só sabe dizer amém

Vivaldo Simão

Haicai do lavrador

A Eduardo Persa
Mais uma colheita,
O riso banguela, a reza...
A vida está feita
Rogério Freitas

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Banditismo

Há alguém a bater à porta
Será a vida ou será a morte?
Alguém a bater à porta
A vida ou a morte?
À porta
A vida ou a morte
Porta
Vida
Morte
À porta
A vida ou a morte
A vida ou a morte?
Morte

Edilberto Vilanova

Haicai sertanejo

A chuva não cai...
O medo, os filhos, a esposa...
“É o jeito!” E se vai.

Rogério Freitas

O galo

O sertanejo bateu as asas
E foi para São Paulo
Eis que levou consigo um galo
E um cabrito enfeitado
Antes do entardecer
O sertanejo brigava com o diabo
Foi quando Deus apareceu
Num trem hidráulico
E disse: paz para um homem cansado!
Eis que quando o trem passou
O galo cantou
E os homens acordaram para o trabalho
E antes do anoitecer
O galo voltou a cantar
E bateu as asas
E o sertanejo voltou pra casa.

Edilberto Vilanova

Ofício

Por meio deste peço
O verso que não veio
Ao ver a menina sumindo
Com olhos de adeus
Peço o verso pelo encanto
De um par de olhos com pálpebras de chumbo
Ao ver o sol
Com seus dedinhos de menino travesso
Se agarrar à beira da rua
Pra vê-la estendida distraída e nua
Por tudo que foi verde
E belo
E triste
Como aquela noite virando manhã

Vivaldo Simão

terça-feira, 12 de maio de 2009

Mágica

Meu bem, que a VIDA não vale a pena
E os retratos não guardam alma pequena
O que vale a beleza se não é gentil?
O que vale o sorriso se não é fato consumado?

Não há morte mágica nem sorte que valha
A pena que deixe o espelho assim: torto
O avesso da beleza é um riso frouxo
E a largura do riso tem dentes consumidos

O que vale amar se a beleza tarde?
E a manhã te verá feia
E amanhã baterei à porta de uma nova beleza
E certamente ela baterá a porta e morrerá também

Edilberto Vilanova e Rogério Freitas

Mudança de estação

Nada disse de absurdo
E você fez susto desse amor
Soltou as amarras da âncora que retinha a nau
E a nau sumiu
Como nuvem que chove e se vai
Como fruta caída
Como um caso comum
Só um caso comum!
Mais um romance sazonal
Mas já é outra estação
E os ventos já não varrem folhas de outono...


Vivaldo Simão & Edilberto Vilanova

A ilha

A poesia inudou minha cama
Minha alma, meus corpo
Meus discos rígidos
Meus livros, meus cenários
Agora, com a luz apagada
Entre as águas que me separam do embaraço
Num mundo de trevas vejo
Um mar de palavras
Um beija-flor que bebe mel
Nos olhos da minha doce namorada
Sonho a face da poesia
Na face da bem amada
Sem susto, sem medo das águas
Não mande navios ou aeronaves
Eu prefiro ficar assim: ilhado

Edilberto Vilanova

Sonetilho

Como flor desabrochando
No despontar da manhã,
Como pássaro cantando
Nos galhos do flamboyan;

Como rio sobre a serra
Beijando todo o luar,
Como orvalho vindo à terra
Pra semente germinar;

Como lagoa silente
De bom perfume envolvente,
Exalando maravilha;

É a luminosa graça
Dominante que perpassa
No rosto de minha filha.

Rogério Freitas

segunda-feira, 30 de março de 2009

Poema Mudo II

Cadê minha voz?
Saltou-me do peito, exaltada
E largou-se num canto
Na noite passada.

Vivaldo Simão

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Haicai dos haicais

Apenas três versos
Arquitetei num papel;
Falei do universo.

Rogério Freitas

Insone

A "N"

Madrugado
Eu afago a ferida
Metade é cicatriz
Metade, carne viva
Legado do amor sem medida
Que você negou

Vivaldo Simão

O velho

No ranger e calar dos sapatos velhos
Os novos passarão.
Da escassez do sexo
Resta o gesto que adormeceu as mãos
O batom preto que enrijeceu os lábios.
Perto do peito, esfacelados,
O jeito e o segredo
De converter todo mal em desejo
A aurora sem pássaro, anjos ou fantasmas,
As súplicas do acaso
E o repicar dos sinos da divisão.

Edilberto Vilanova

Jardim de cactus

Devolva-me os sóis
Que queimaram meus pés,
Guarde os cipós
Que arregaçaram minhas mangas
Retalhe as sedas rasgadas pelo cansaço
Desate os nós em nós laçados a sós
E dos ossos quebrados, refaça
Teu jardim de cactos,
Pois está no espinho ensaguentado
O segredo da carne.

Edilberto Vilanova

Prece Pagã

Quisera não ser eu
Dado ao vício pagão
De ser ateu
Derramaria do meu peito
Uma prece
Por Alice
E nela rogaria ao céu
Que lhe guardasse
De tudo aquilo que não libertasse
Do manto turvo que a vida veste
Quando um amor “desacontece”
E tece-se assim a dura casca
Do casulo, onde as “palarvas”
Teimam em não vingar

Quisera eu que seu amor vingasse
Em alma, em carne, em toque, em ato
Rompesse a pele dos bits abstratos
E apenas fosse feito fato

Vivaldo Simão

Haicai de vida e morte

Um choro ao Norte
Nasceu uma vida;
E, ao sul, Um choro de morte.

Rogério Freitas

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Das vertigens e fumaças

Meus amores duram pouco
Têm o tempo de um cigarro
(e eu largando baganas pelo caminho)
E também trazem consigo
Vertigens passageiras
Mas no fim viram fumaça peito afora

Certa vez me dei ao vício
E me achei fumando filtros noite adentro
Até morrer de cansaço
Até perder um pedaço
Do que eu tinha de sagrado
Agora meus amores são tão curtos
Como o tempo de um cigarro

Vivaldo Simão

Ciclo natural

Entre parênteses:
As regras
O gesto de cristal
As conjunções e o feto

Dentro da reta:
A demora de pedra
A cerâmica que se funde e se preserva
A vírgula e o verbo

Dentro das conjugações:
O espectro
O mármore à espera
O parágrafo e o ponto final.

Edilberto Vilanova

Inscrição para a margem de um rio

Cantando alegre, o rio segue livremente.
Quer nesses dias claros, quer nas noites turvas
Não para; corre sem temer as grandes curvas
Ocultadas por um caminho inclemente.

E vai andando a contemplar paisagens belas;
Da própria queda faz as lindas cachoeiras......
Passa entre troncos, banha searas inteiras
E na noite só se lembram dele as estrelas.

A vida também segue um curso natural:
Vai deslizando, luta contra todo o mal
E vence algumas coisas que muito reprova.

Mais, porém, é a vida – barra a empecilho!
O rio, em enxurradas, ganha novo brilho
E ela só perde luz, nunca se renova.

Rogério Freitas

Guerra fria

Não diga palavra
Melhor ouvir silêncios
Pontuando o ruído da artilharia
Foram tiros na rua?
Ou é só meu peito que se agita?
Sabe lá...Às vezes o amor se parece mesmo com a guerra
E já perderam-se as contas
De tantos feridos.
E nós, que já cruzamos o limite do perigo?
Frente a frente no front
Perdemos as armas
E a trilha da volta.
Estendo uma mão de aliado
No espaço vazio onde outrora eu vi tua mão
E desaprendo a estratégia que eu mesmo armei
Então lhe deixo ir, por mero cansaço.

Vivaldo Simão

O trem não vai parar

O trem não vai parar
Dançando com cheiro de fumaça,
Ele leva carne de charque
Pinta o sete, e lavra, fecundando flores
Caixas de abelhas cheias de saudades
Que se não catasse palavras não escaparia pela válvula.
Novamente a carne seca e toda safra de arroz e feijão já convertida em festa,
Nesse baião arisco, corta a chapada do corisco
Beija as sete portas encantadas
E encontra as sete cidades perdidas.

Edilberto Vilanova

Haicai do ébrio

Amanheço triste,
Vou ao copo novamente
Me alegra a aguardente.

Rogério Freitas

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Tom

Lá onde tudo é escuro,
Em mim, sem dó, há um si menor,
Onde brilha um sol maior.

Edilberto Vilanova

Miragens de Luz e Mar

Luz
De apagar escuro
De acenar um porto
(Canto de sereia inverso)
Mas se mira os olhos do navegador
Desfaz a guia e cega
Claridade magnética suga
Planetas-insetos
À órbita de uma estrela fria

Mar
De seguir viagem, navegar
Vislumbrando continentes impalpáveis
Universo submerso de onde insurge um canto
De sereia aos navegantes, já distantes
Dos faróis do porto
Que perdem se do Norte, em rumo torto
E presos pelo fado do naufrágio, bebem doce morte:
Deixam-se levar azul adentro pela água fria

Por sobre o mar, a luz reflete o azul
Tornando o mar também azul, mera miragem
Por sobre o mar o mesmo céu de cujo ventre
Vi derramar anjos cadentes
Trazendo em si divinas dádivas
Dadas às dádivas da carne
E desse amálgama vi teu corpo despertar

Vivaldo Simão

Paráfrase

Os três mal amados, enfim, perceberam que o amor simboliza a morte do homem. Raimundo tangia o vapor de Maria e João espreitava os amantes de Teresa, enquanto o terceiro mal amado, por não saber mais do amor que agonizava dentro do seu peito, passou a maldizer os amantes, os derradeiros românticos que tomavam sorvete de morango na praça das alianças. E o diálogo era sempre o mesmo: num ranger de ossos, Raimundo dizia que o querer é a morada do ócio. Devorado, João cantava que é tempo de se dividir nos outros. Rejeitado, o terceiro mal amado olhava de lado, fazia pouco caso e para não liquidificar a dor, escapava pela válvula, evasivo, embebia o cálice, pois a pele cálida ganhara gélidos segredos. O tempo é um açoite, findou-se o tempo de amar, agora tudo é carne, prepare seus cutelos e leve suas cabeças ao matadouro, eis a fala da terceira pessoa do singular. Para ele não havia Teresa, nem Maria, apenas flores murchas agonizando no asfalto, e a falta que se proliferava, em reversos virava fera. No peito já velado, o palpitar mórbido, que de todo modo configurava-se em reminiscências sórdidas. Hostil, ele viu que o mundo todo é vil, e a luz da praça das alianças, já mortiça, tornou-se a própria escuridão. As identidades foram comidas, pois no escuro todas as identidades possuem a mesma cara. O vapor de Maria evaporou e virou nuvem, Raimundo fez-se empresário, João descobriu que Teresa era lésbica, e como ela, travestiu-se de outro sexo. Por não encontrar identidade, subversivo, o terceiro mal amado dispersou-se, ocultou o nome na poeira da solidão e foi devorado na pista de dança.

Edilberto Vilanova

À lua

Muita alvacenta, plácida, bonita,
Lúbrica indiferente, cristalina,
A lua entre duas nuvens negras
As faz parecer com uma cortina.

Rogério Freitas

Porto

Quando caírem os dentes
Restará amor no peito
E quando minguarem os sexos
Ainda haverá desejo
De ser extensão do outro
Ainda haverá o beijo

Ói que o rio ligeiro desabou num mar
Tão maior que os continentes que abrigam os rios
O mar é pleno!!!
Já não corre, já não busca
O mar é porto
Posto sobre a terra
Beija o horizonte e a praia
E bebe o azul do céu

Quando vierem as rugas
Quando emergirem os rasgos
Indícios do tempo passado presentes
Não te pintes
Não te espantes
Se eu quiser teu corpo
Como queria antes
E brincar na tua pele sem retoques

E quando o velho peito
Sucumbir de cansaço
Antes de dormir
Façamos um pacto
Seremos sempre um nó
E brincaremos numa brisa
Quando formos pó.

Vivaldo Simão

Ensaio

Não verei mais os cubos de rodas vivas
Desenrolando as tranças de estações e gestos
Verei ainda o aguaceiro das rotas de ilhas,
E fragmentos para fecundar o passo

Não mais verei rosas místicas, nem cáctos.
Dessa esfera ficará o esforço para ser círculo
Verei ainda o desbotamento das árvores
E um ensaio de rastro para alimentar o passo

Deixarei nódoas e mãos esmagadas pelo salto
Uma tarja negra, o silêncio e dedos na parede.
A pele cálida ganhará gélidos segredos.
E de tanto saltar verei apenas o esboço do passo.


Edilberto Vilanova

A formiga e a cigarra

E cantou todo o verão a cigarra,
Por isso viu o inverno de fadiga
Chegar sem nada ter; com a fome esbarra
E vai pedir uma ajuda à formiga.

Mas, esta, da vadiagem inimiga,
Associou sua vizinha à farra;
Negou a ajuda e fez pouco da amiga
Com uma sutil pitada de algazarra;

À cigarra mostrou toda a riqueza
Que ela só construíra com suor
E se exaltava a dizer: - Que beleza!

Mas disse a cigarra longe de otário* -
O fruto da lida só tem valor
Quando o seu dono é um pouco solidário! ·

*Concordância correta é otária.

Rogério Freitas